Segunda parte da série de reportagens evidencia violências que persistem

As violências que persistem - Foto por: Christiano Antonucci/Secom-MT

Segunda parte da série de reportagens evidencia violências que persistem

Rompida a barreira do medo, algumas mulheres vítimas de violência precisam superar ainda outros obstáculos encontrados após os registros das ocorrências e instauração dos inquéritos. Isso ocorre quando o homem não admite o fim do relacionamento e não respeita medidas protetivas impostas. As políticas públicas que garantem a proteção das mulheres são o foco desta segunda reportagem da série especial “Mortes Anunciadas”.

Após 16 anos de relacionamento, La Paz (nome fictício para resguardar a identidade da vítima) sofreu uma tentativa de feminicídio, depois de muitas agressões. As medidas protetivas não foram suficientes para cessar a violência. “Uma vez ele chegou em casa agressivo, xingando, afirmando ser homem e disse que eu podia chamar a polícia porque ele não ia sair”, relatou ela, aos 45 anos de idade, que declarou ser pensionista.

A afirmação da masculinidade está presente em praticamente todos os 13 inquéritos, instaurados entre 2016 e 2017, cujos relatos foram analisados pela jornalista e escrivã da Polícia Civil, Luciene Oliveira, na dissertação de mestrado “O feminicídio no processo da violência é um crime evitável? Políticas de proteção às mulheres em situação de violência”. O depoimento de La Paz faz parte da pesquisa acadêmica, defendida por ela junto ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

A violência persistente é percebida nas narrativas de La Paz, que contraiu HIV (Aids) do próprio parceiro. “Ele me perseguia, achava que eu tinha que viver o resto da vida com ele, por sermos portadores da doença”. Na noite do crime, após oito meses estando separada, ela o encontrou sentado nos fundos de sua casa e pediu para ele sair. “Eu não gosto mais de você e não quero você aqui”.

O homem ficou calado e ela virou para acender a luz. Quando ficou de frente novamente, percebeu que ele estava de pé. “Ele tirou uma faca de trás da planta, partiu pra cima de mim e deu uma facada no meu pescoço. Eu consegui segurar a faca e empurrar ele. Peguei um pano, enrolei no pescoço, fui até a porta de casa, gritei pra minha irmã. Ela me colocou no carro e levou pro Pronto Socorro. Ele só parou porque jorrava muito sangue e viu que eu ia morrer”, relatou, afirmando que ele não disse uma palavra.

Foto por: Christiano Antonucci/Secom-MT

Estrutura de atendimento

Por ter foco no município de Várzea Grande, o estudo analisou a estrutura da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, Criança e Idoso, Central de Ocorrências e Central de Flagrantes, todas unidades deste município. Foi aplicado um questionário a 18 servidores, entre delegados, escrivães, investigadores e estagiário. Deste total, oito afirmaram não ter participado de capacitação na área de gênero. Quanto ao reconhecimento de risco que a vítima corre, 61% responderam que às vezes é possível identificar, 28% disseram que é possível e 11% afirmaram ser impossível.

Os serviços dessas delegacias são voltados ao pronto-atendimento, que consiste na primeira triagem das vítimas para encaminhamentos aos demais procedimentos policiais, como pedidos de medidas protetivas, assistência psicossocial e equipes para acompanhamentos ao Instituto de Medicina Legal (IML), a retirada de pertences e casa de amparo. Na ocasião da pesquisa, nenhuma das três delegacias tinham equipes psicossociais em seus quadros.

A Delegacia da Mulher de Várzea Grande, a partir de 2021, recebeu uma profissional pós-graduada em Psicologia, para auxiliar nos trabalhos de oitivas às vítimas. A contratação foi feita pela Diretoria da Polícia Civil e deve contemplar outras delegacias da mulher de Mato Grosso que não têm esse profissional. Outra dificuldade está na ausência de posto do IML para exames de corpo delito das vítimas no município.

Na unidade policial especializada, todos os dias, são confeccionados em média 20 boletins de ocorrências, de todas as naturezas criminais. De 2016 a 2017 havia 1.257 procedimentos, dos quais 1.194 eram inquéritos e 63 termos circunstanciados de ocorrência (TCO). Mas o total de registros de ameaças nessa unidade somou 2.421 registros. Ou seja, o boletim de ocorrência é feito no intuito de mostrar uma atitude perante o agressor com a expectativa de que ele mude, porém praticamente metade das vítimas não representa criminalmente.

Outra constatação é que poucas mulheres aceitam sair da residência para receber amparo na casa abrigo do município, seja porque não querem deixar a casa ou bens materiais, ou por não terem onde abrigar os filhos maiores de 10 anos de idade, que não podem ficar no local. No ano de 2019, apenas 14 mulheres foram encaminhadas pela Delegacia da Mulher à casa de amparo. Em 2020, até maio foram oito vítimas.

Rede de Enfrentamento

Tento optado pelas medidas protetivas, a vítima preenche uma ficha de avaliação de risco, para que seja encaminhada junto com o pedido pela Delegacia ao Poder Judiciário. O objetivo é identificar o risco que a mulher corre para evitar a reincidência da violência e o feminicídio. A Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres de Várzea Grande, criada em 2018, acrescentou mais um item recentemente ao formulário, que é o acompanhamento da Patrulha Maria da Penha.

Em 2019, das 797 medidas protetivas concedidas no município, 261 mulheres aceitaram receber acompanhamento da Patrulha, que em Várzea Grande é feito pela Guarda Municipal e a Polícia Militar (PM-MT). Entre as razões para a baixa proporção, está o fato de que a criação da Rede de Enfrentamento (composta por órgãos de segurança, justiça, saúde e assistência social) é recente. Além disso, algumas mulheres se sentem constrangidas em receber policiais em casa, com receio do julgamento de vizinhos, ou acreditam que não estão em risco ao ponto de serem acompanhadas pela Patrulha, percepção da violência que precisa ser melhorada junto às vítimas, como aponta a pesquisa.

Segundo a mestre em Sociologia e autora da pesquisa, Luciene Oliveira, há muito o que discutir para o avanço das políticas públicas. “Potencializar os direitos das mulheres, ofertar as elas maior acesso aos serviços públicos de saúde, de segurança, justiça e assistência psicossocial, melhorar as estruturas do Estado nesse acolhimento, não somente às mulheres como também aos homens agressores. Os esforços existem, mas precisam ser ampliados. Cada um tem um papel muito importante nisso, falo, especialmente, dos profissionais da segurança pública, os quais se desdobram em suas funções”.

A promoção de serviços de reflexão sobre a violência para os homens e a conclusão do problema proposto na dissertação serão abordados na terceira e última matéria da série especial. Acompanhe o site www.sesp.mt.gov.br e o Instagram da Sesp-MT (@sespmt) para conferir.

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