Reeducandas abrem janelas e livros em busca de diplomas

Foto por: Christiano Antonucci

Reeducandas abrem janelas e livros em busca de diplomas

A primeira coisa que elas fazem ao entrar na sala de aula é abrir as janelas. Um instante de contemplação à luz do dia que interrompe as longas horas que passam entre paredes e teto. Maria* e Luiza* estudam na Escola Estadual Nova Chance e estão entre as 74 reeducandas da Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May, em Cuiabá, que se inscreveram no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja).

A participação no Encceja é voluntária e gratuita, destinada aos jovens e adultos residentes no Brasil e no exterior, inclusive às pessoas privadas de liberdade, que não tiveram oportunidade de concluir os estudos na idade apropriada. Para intensificar a preparação, as recuperandas participaram de “aulões”, nos dias 1º e 03 de outubro, ministradas por professores habilitados nas disciplinas de matemática e português da Secretaria de Estado de Educação (Seduc-MT).

O exame permite aos participantes alcançarem o certificado nos Ensinos Fundamental ou Médio. É exatamente isso que Luiza almeja, um bom resultado para avançar do 8º ano do Ensino Fundamental para o Ensino Médio. “Quando estava lá fora eu queria estudar, mas sempre acontecia alguma coisa, um problema de saúde, ou algo do tipo. Então, quando eu vim para o presídio surgiram as vagas na escola, aí fiz a matrícula”. Segundo ela, os professores são atenciosos e muito pacientes, principalmente no caso dela que tem mais dificuldade em matemática.

Aos 23 anos de idade, Luiza afirma que está presa por conta de um mal-entendido, ocorrido em 2016. “Estava no lugar errado e na hora errada, teve uma confusão, uma briga. Eu tinha ido na moto com meu esposo, porque chamaram ele até lá, saiu morte, e algumas testemunhas disseram que eu estava guiando a moto e dei fuga para ele, mas eu estava na garupa, ele tinha acabado de me buscar no serviço”, conta ela, que trabalhava como auxiliar de cozinha na época. O marido também foi preso.

A jovem tinha o sonho de ser médica veterinária, mas hoje já considera cursar Enfermagem ou Educação Física. Com semblante sereno e voz tranquila, ela diz que procura prestar atenção e receber o máximo de informações possíveis nas aulas, que ocorrem de segunda a sexta-feira, no período vespertino. “Quando sair daqui, pretendo continuar estudando porque é bom, uma coisa que a gente leva para a vida inteira, e onde você for procurar emprego todo mundo pergunta do estudo e para ficar mais inteligente, né, ter mais sabedoria”. Enquanto isso, ela, que é natural de Cáceres, comercializa peças em crochê, que aprendeu a fazer na adolescência.

Mais falante, Maria conta que as aulas são os momentos mais aguardados do dia. “Logo que cheguei procurei me matricular, porque a gente fica lá dentro trancada e quando vem estudar pode ver o dia, sentir o vento e conhecer outras pessoas de outros raios, conversar com os professores”. Ela chegou a desistir, mas foi convencida a retomar os estudos. “Eles foram conversando comigo, me estimulando, eu vi que os professores vêm de longe, tem uns que vêm de ônibus. Aí pensei ‘eles estão fazendo de tudo para ensinar, vou aproveitar a oportunidade’”.

Ela está com 37 anos e foi presa há seis meses, pela segunda vez, quando tentava levar drogas de Porto Velho (RO), onde nasceu, para Fortaleza. Mãe de quatro filhos, Maria parou de estudar quando estava no 6º ano do Ensino Fundamental. O plano para quando ganhar a liberdade novamente é vender algum tipo de alimento, como bolo ou geladinho, e continuar dedicando tempo à igreja, como já faz dentro da penitenciária. “Eu sou evangélica, já era antes de entrar aqui, e quero continuar nesta comunhão com Deus”.

Segundo a orientadora pedagógica da Escola Estadual Nova Chance, Maria Conceição Caldas, o objetivo dos “aulões” foi propiciar às reeducandas uma melhor assertividade na prova. “Agradecemos à diretora da unidade, Maria Giselma Ferreira, que abriu as portas e nos propiciou esses dois momentos, e também à Seduc pela parceria. Nós acreditamos que isso irá ajudá-las muito na hora da prova e também que elas possam estimular as que ainda não são alunas para que façam parte da escola”.

Há 15 anos em salas de aula regulares, a professora Tânia Italaney começou a lecionar em unidades prisionais em janeiro deste ano. Com formação em Biologia, ela é responsável pela disciplina de Ciências da Natureza na Penitenciária Ana Maria e na Penitenciária Central do Estado (PCE). “É uma experiência nova, pois nas escolas comuns o aluno tem toda a liberdade de ir e vir, e aqui dentro não. Então, há dias que elas chegam para estudar irritadas”.

O desafio, segundo a educadora, é conseguir transmitir o conhecimento de forma atrativa e paciente. “Elas são extremamente inteligentes, mas algumas apresentam defasagem. O trabalho é focado não só no conteúdo específico, temos que trazer algo diferenciado, tem que ser uma aula dialogada, que traga visão de mundo também”.

Outro ponto apontado por Tânia é a rotatividade de alunas, que na penitenciária feminina é maior. Os resultados, porém, são gratificantes. “Eu já cheguei a chorar ouvindo algumas histórias, é gratificante sentir que podemos colaborar com uma nova vida que elas querem buscar fora daqui”.

Mais de 2 mil inscritos no estado

Em Mato Grosso, 2.036 reeducandos de 40 unidades penais do Sistema Penitenciário farão as provas do Encceja nos dias 08 e 09 de outubro deste ano. Deste total, 191 são mulheres. Os dados são do Núcleo de Educação nas Prisões (NEP) da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp-MT).

Em 2018, foram 1.664 inscritos de 39 unidades penais envolvidas. Destes, 264 foram aprovados e conquistaram a certificação, sendo 131 mulheres privadas de liberdade. Destas, 81 eram da Penitenciária Ana Maria do Couto May. Atualmente, a unidade feminina de Cuiabá possui 217 recuperandas e 56 delas estudam na Escola Estadual Nova Chance.

O número de inscritas é maior que o de alunas porque a coordenação também dá oportunidade às demais reeducandas que desejem obter a certificação. Além do título de conclusão de ensino, é possível conseguir remição da pena, conforme estipula a Recomendação n° 40, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Nós entendemos que o estudo é muito importante e a maioria delas tem este interesse”, explica a coordenadora pedagógica da penitenciária, Margaret Anderson de Oliveira.

A norma diz que na hipótese de o apenado não estar, circunstancialmente, vinculado a atividades regulares de ensino no interior do estabelecimento penal e realizar estudos por conta própria, ou com simples acompanhamento pedagógico, deve-se considerar, “como base de cálculo para fins de cômputo das horas, visando à remição da pena pelo estudo, 50% da carga horária definida legalmente para cada nível de ensino [fundamental ou médio]”.

As unidades prisionais também participam de outros exames nacionais e concursos de redação. Da Penitenciária Ana Maria do Couto, uma aluna foi classificada para a segunda etapa da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) e aguarda o resultado da prova que ocorreu no final de setembro.

*Os nomes são fictícios, para preservar as identidades das entrevistadas.

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